Durante sua gestão como ministro da Saúde no governo de Jair Bolsonaro, de 2021 a 2022, o cardiologista paraibano Marcelo Queiroga redigiu um projeto de lei que exigia que a indústria da saúde no Brasil declarasse os pagamentos e benefícios concedidos aos médicos. Essa proposta foi inspirada no Sunshine Act, do ex-presidente americano Barack Obama, que determinou a transparência dos gastos nos Estados Unidos a partir de 2010.
Vários países adotaram leis semelhantes para tornar públicos possíveis conflitos de interesse. O projeto de lei de Queiroga foi encaminhado a Bolsonaro, que se comprometeu a avaliá-lo após as eleições. No entanto, nada foi feito a respeito.
O Ministério da Saúde durante o governo de Lula também ignorou a proposta e não está discutindo o assunto. “Para garantir a sustentabilidade dos sistemas de saúde, a transparência é essencial”, afirmou Queiroga em entrevista ao UOL. A seguir, confira os principais trechos da conversa.
UOL: Qual era a ideia da medida provisória proposta pelo senhor, durante o tempo em que foi ministro?
Marcelo Queiroga: O objetivo era trazer mais transparência para o setor. Para que a sociedade pudesse entender a relação entre a indústria farmacêutica, a classe médica e os pesquisadores da área da saúde. Não é uma ideia original.
Já existe uma legislação nos Estados Unidos que se chama “sunshine”, [que significa] o sol brilhando, para trazer luz sobre o setor. Esse tipo de transparência, com certeza, iria trazer melhorias na saúde pública.
Por que a relação da indústria com os médicos deve ser transparente?
Porque existe um potencial real de influenciar na prescrição dos médicos. E a prescrição tem que ser influenciada, principalmente, pelo aspecto científico.
Para o paciente, o que a transparência significaria, na prática?
Ficaria claro quais são os valores que estão sendo pagos [para o médico]. Muitas vezes, uma medicação está sendo prescrita por conta da influência da indústria farmacêutica.
O remédio é apresentado como uma inovação, como um grande benefício, mas muitas vezes não é. Então, é necessário que se saiba tudo o que existe por trás dessa relação.
Não só a divulgação do vínculo do médico com a indústria, mas também saber o quantitativo que está envolvido naquele vínculo.
A pandemia influenciou na sua decisão de buscar essa transparência?
Com certeza. Na pandemia, o acesso de médicos aos veículos de comunicação em massa foi muito amplo. Estavam o tempo inteiro na televisão, defendendo seus pontos de vista.
Muitas vezes, esses pontos de vista tinham por trás interesses que a sociedade não sabia quais eram.
Não estou questionando o benefício ou não de um determinado medicamento ou de uma vacina. Mas é importante que se saiba o quê tem por trás disso e quanto há de recursos envolvidos.
Qual o papel do Congresso nessa discussão?
Existem dois projetos de lei na Câmara dos Deputados para dar transparência para o pagamento da indústria para os médicos, um de 2017 [PL 7990/2017] e outro de 2019 [apensado ao anterior]. Nós já estamos em 2024 e esses projetos estão parados.
Quando não anda, é porque não há interesse de fazer esse projeto tramitar dentro da Câmara.
Então, eu tinha duas alternativas. Uma era estimular os parlamentares a dar o devido encaminhamento ao processo. Ou, por intermédio de uma medida provisória, motivar esse debate no Congresso Nacional. Então, preparamos uma MP [medida provisória].
Até que ponto a ideia avançou? Ela foi discutida com outras pastas do governo?
Esse tema foi discutido nas áreas relacionadas no início de 2022. A Anvisa e a Controladoria-Geral da União participaram das discussões.
O texto da MP foi escrito com minha equipe técnica. Previa a transparência dos pagamentos não só para médicos, mas para associações de pacientes.
Era uma proposta bastante abrangente que, se aprovada, traria muita transparência para o setor.
O texto da proposta de MP foi discutido com o então presidente Jair Bolsonaro?
A MP foi encaminhada ao Palácio do Planalto, com a devida fundamentação. Eu cheguei a conversar com o presidente Jair Bolsonaro, que concordou com o teor da medida.
Como estávamos naquele período eleitoral, o presidente me pediu que deixasse para encaminhar o assunt